Impulsionada pelo preço módico e baixo custo de manutenção, a motocicleta assumiu protagonismo no trânsito brasileiro: presença maciça nas vias em todo o País, esse veículo também ganhou participação relevante nos indicadores de sinistros, exigindo a formulação de ações educativas e abordagens que estimulem maior conscientização da população, com vistas a fortalecer o esforço de preservação da vida no trânsito. Para contribuir nessa discussão, a Associação Brasileira de Medicina do Tráfego (Abramet) mobilizou um grupo de especialistas renomados e publica o artigo inédito “A motocicleta no Brasil do século XXI”, com um panorama sobre a presença da motocicleta e indicadores de sinistros a ela associados.
“Esse artigo é uma contribuição qualificada, e inestimável, que a Abramet oferece não apenas ao médico do tráfego, mas à sociedade brasileira como um todo. Só poderemos enfrentar os graves riscos desses veículos, conhecendo em profundidade os dados”, avalia do dr. Flávio Emir Adura, diretor científico da Abramet. “A motocicleta ganhou relevância no trânsito brasileiro e precisamos estar sempre atualizados sobre esse tema. É esse o papel abraçado pela Abramet desde a sua fundação, há 40 anos”.
Dados oficiais indicam que o número de motociclistas cresceu 54,3% entre 2009 e 2019 no Brasil: 33.024.249 milhões de brasileiros estão habilitados na categoria A, ou combinando as categorias AB, AC, AD e AE, o equivalente a 44,7% do total de portadores de Carteira Nacional de Habilitação (CNH). Essa expansão alcança também a presença de motocicletas nas vias brasileiras: a frota de motocicletas quase dobrou nesse período, saindo de 15 milhões de unidades em 2009 para mais de 28 milhões dez anos depois.
Assinado pelos pesquisadores doutores Maria Helena P. de Mello Jorge, Áquilla dos Anjos Couto e Pedro Manoel dos Santos; o documento analisa a morbimortalidade de ocupantes de motocicleta, pedestres e ciclistas atropelados por este tipo de veículo no Brasil, de 2000 a 2019. O artigo também busca iluminar o panorama desse tema em cada unidade da federação. Para a análise, os especialistas avaliaram toda a categoria motocicleta, que inclui não apenas a moto, como também as motonetas, os triciclos e quadriciclos motorizados, entre outros. Tais veículos carregam semelhança nos riscos de sinistros a que seus usuários estão expostos.
“O trabalho mostra com detalhes quais as áreas são mais vulneráveis, quem são as vítimas e os tipos de acidentes mais comuns. Fornecendo, portanto, elementos para que os gestores das áreas da segurança viária e da saúde possam investir na sua prevenção”, comenta a dra. Maria Helena. O artigo ressalta que a relevância do tema é evidenciada pelos esforços que vêm sendo empreendidos nos últimos anos pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pela Organização das Nações Unidas (ONU), inclusive, com o plano Década de Ação pela Segurança no Trânsito (2011-2020). “Estudos mostram queda nas taxas de acidentes de trânsito de todos os tipos, com exceção daqueles envolvendo motociclistas. Sentimos, então, que era chegada a hora de focar nesse problema em todo o País”, explica a especialista.
PANORAMA NACIONAL – Os dados evidenciam a gravidade e complexidade desta questão, com altas taxas de mortalidade em sinistros com motocicletas, em oposição à queda nos de trânsito em geral; elevados números, sem sinais de declínio, de internações hospitalares de vítimas deste tipo de sinistro; aumento contínuo da frota deste tipo de veículo; e heterogeneidade na distribuição das taxas de mortalidade e de internação entre as regiões do Brasil.
O levantamento investiga os dados oficiais do Brasil, atualizados em 2019, relativos: à frota, à mortalidade e às internações hospitalares, além de atendimentos em serviços de emergência. São analisadas, ainda, as lesões segundo segmento corpóreo afetado, promovendo uma estimativa das sequelas, importante aspecto no que tange ao estudo dos sinistros. “Um estudo como esse é de extrema relevância, visto que, apesar da multissetorialidade dos sinistros de trânsito, o maior ônus se impõe ao campo da saúde, gerando gastos elevados e piora nos seus indicadores”, comenta Adura.
Os dados que baseiam a pesquisa são provenientes dos sistemas oficiais de informação do Ministério da Saúde: Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM/MS) e Sistema de Informações Hospitalares do Sistema Único de Saúde (SIH/SUS). Os números relacionados às mortes por sinistros de motocicletas evidenciam a amplitude desta problemática. Nos primeiros anos deste século, correspondiam a aproximadamente 10% do total de sinistros de trânsito. E, em 2017, representaram cerca de 35%.
PERFIL DAS VÍTIMAS – Neste trabalho, são apresentados os dados de mortalidade por sinistros de trânsito quando a vítima é motociclista, relacionados ao Brasil, regiões e unidades da federação, de 2000 a 2018. No material, destaca-se o ano de 2011, que é tido “como parâmetro para analisar os possíveis declínios/ascensões de seus valores, tendo em vista o Brasil participar do acordo internacional que considera esse ano como limite inferior da chamada Década de Ações visando à Segurança Viária”.
Um dos pesquisadores responsáveis pela pesquisa, dr. Áquilla dos Anjos Couto, enfatiza esta mudança no perfil das vítimas, nos últimos anos, com o predomínio dos usuários de motocicleta. Segundo ele, o artigo tem justamente a proposta de fortalecer a missão da Abramet em relação à preservação da vida e à mitigação do sofrimento no trânsito.
“No âmbito social, é estimado que a cada paciente hospitalizado, oriundo de sinistralidade de trânsito, no mínimo quatro pessoas próximas são diretamente impactadas: acompanhante de internação, suporte familiar, auxílio financeiro, custeio de medicamentos, período de reabilitação e possível reorganização dos hábitos cotidianos para sequelas permanentes”, detalha.
A pesquisa revelou, quanto à distribuição dos óbitos de motociclistas por sexo, uma nítida preponderância do sexo masculino (88,7%), com taxa de 10,6 por cem mil habitantes. Enquanto no sexo feminino, a mortalidade proporcional foi de 11,3%, com taxa igual a 1,3 por cem mil mulheres, evidenciando o maior risco a que os homens estão sujeitos.
A distribuição das ocorrências segundo idades, de acordo com o levantamento, mostra o predomínio do grupo de adultos jovens (20 a 39 anos), que correspondeu a mais da metade do total de óbitos (3.699 na faixa 20 a 29 anos e 2.766 mortes entre 30 e 39 anos, totalizando 56,3%). Entre 40 a 59 anos, houve 3.025 mortes; entre os adolescentes, 10,5%; e no grupo dos idosos, 734 (6,4%).
DISTRIBUIÇÃO GEOGRÁFICA – Considerando a distribuição pelas regiões, constata-se que as taxas mais elevadas de mortalidade estão no Norte, Nordeste e Centro Oeste, respectivamente com 8,1, 8,4 e 7,7 óbitos de motociclistas para cada 100 mil habitantes. Uma possível explicação é que exatamente nesses locais há menos fiscalização quanto à velocidade, uso de equipamentos de segurança e maior número de pessoas dirigindo sem habilitação.
Os resultados do levantamento mostram que os esforços dispendidos no Brasil para diminuir as taxas de morbimortalidade por sinistros de trânsito começam a apresentar seus efeitos visto que o número de vítimas fatais dá sinais de declínio desde 2015. O artigo ressalta que o Ministério da Saúde avalia haver evidências de que a implantação de leis mais rígidas, como o Código de Trânsito Brasileiro e a chamada Lei Seca, pode ter sido um dos fatores responsáveis pela redução significativa da mortalidade medida para todos os tipos de vítimas.
Entretanto, os pesquisadores acreditam que essa repercussão positiva não é notada nos casos em que a vítima é motociclista (condutor ou passageiro). Para mudar este cenário, os pesquisadores afirmam que a prevenção é o principal caminho. “Precisamos aplicar isso desde a prevenção primária, para evitar que os acidentes ocorram; passando pela secundária, fornecendo meios para que as vítimas possam ser bem assistidas; até a prevenção terciária, que objetiva a recuperação/reabilitação das pessoas com sequelas, para que elas possam retornar às suas vidas”, explica dr. Pedro Manoel dos Santos, um dos pesquisadores responsáveis pelo artigo.
EDUCAÇÃO E FISCALIZAÇÃO – O artigo destaca, ainda, que o Denatran contabilizou, em 2019, no Brasil, a aplicação de 329.796 multas decorrentes da não utilização de capacete pelo condutor e 219.989 pelo não uso de equipamentos pelo passageiro. Sobre o uso do celular enquanto dirigem, foram aplicadas penalidade a 505.673 motociclistas. Sendo que, de acordo com a literatura, a distração causada pelo uso do celular consiste em quatro tipos diferentes de atuação: visual, auditivo, físico e mental; com aumento do risco de colisão em estradas em quatro vezes durante a condução.
No que tange à distribuição geográfica dessas mortes e internações, as regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste se destacam. A situação no Norte/Nordeste preocupa ainda quando se examinam os dados do DPVAT, que mostram que em mais de 80% dos benefícios pagos, os beneficiários eram vítimas de acidentes de moto.
Os pesquisadores concluem que, a partir dos dados coletados neste trabalho, o cenário grave demanda soluções urgentes. Eles entendem que, com mais informações, políticas públicas sejam postas em prática, a fim de que com fiscalização adequada, efetiva e constante, a meta de baixar esses números possa ser, finalmente, alcançada.
“Os dados levantados referentes à sinistros, internações e mortalidades são fundamentais para que o fluxo da tríade ‘problema-informação-ação’ seja efetivo. Isto é, que as ações postas em prática frente ao problema possam reverter em melhoria da saúde da população, uma vez que melhor informação leva sempre à maior qualidade na tomada de decisões”, analisa dr. Aquilla dos Anjos Couto.