Acidentes de Trânsito, consumo de álcool e drogas no ambiente do Transporte Rodoviário: uma questão de Saúde Pública. E o discutível exame de cabelo.

Por ABRAMET em 14/02/2018

A chamada Lei dos Caminhoneiros, Lei nº 12.619/2012, que acaba de entrar em vigor só agora em março de 2016, foi revisada através de uma nova versão, Lei nº 13.103/2015, complementada pela Portaria nº 116/2015 do MTPS, com objetivo de trazer melhorias nas condições de trabalho desse segmento dos motoristas profissionais de transporte de carga e de passageiros, portadores da Carteira Nacional de Habilitação (CNH) nas categorias C, D e E. Cabe destacar que dentre os diversos problemas reclamados (questão do frete, má conservação estradas, pedágios caros, longas jornadas sem pontos de parada para descanso - PPD, problemas de segurança, falta de atenção de saúde,..), o consumo de álcool e de outras drogas, incluindo o rebite, representa motivo de séria preocupação devido a que, na maior parte dos acidentes, existe efetiva relação com esse consumo. Assim, a classe dos motoristas profissionais vem cobrando desde há muito a necessária regulamentação legal pertinente às condições de trabalho através de medidas que garantam ambiente mais seguro e saudável no que tange aos transportes de cargas e de pessoas. As empresas de transportes e entidades ligadas a esse segmento, públicas e/ou privadas, são partes indispensáveis desse contexto e devem estar envolvidas na discussão e na construção das medidas de regulamentação do setor. Assim, uma lei para trazer melhorias efetivas para todos os atores envolvidos, deveria aproveitar a oportunidade e o momento, para tratar de modo abrangente e resolutivo essa polêmica questão que diz respeito ao consumo de álcool e de outras drogas pelos motoristas profissionais, condutores de veículos pesados e de transportes coletivos. Em artigo publicado (Lima, JMB, Para além da Lei Seca,..., 2013), a partir de nossa participação na Audiência Pública sobre a Lei Seca, promovida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) como espaço de discussão suscitada pela impetração de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN), presidida pelo Excelentíssimo Sr. Ministro Luiz Fux, fizemos referência ao fato de que as medidas implementadas de fiscalização e de repressão não lograram os resultados esperados, ou seja, a redução significativa do número de mortes nas estradas. O número de mortos hoje chega, segundo dados do DataSUS/SIM/Min. da Saúde e do DPVAT, a cerca de 50 mil/ano, enquanto em 2008 era de pouco mais de 37 mil (aumento de 30%), isto é, aumento de 30% nesse período. Neste sentido, a presente Lei nº 13.103 /2015, junto com a Portaria 116/2015 do MTPS, falha ao promover, de forma enfática e quase exclusiva, o exame de cabelo como exigência prioritária para obtenção da CNH e para admissão e demissão de trabalhadores do transporte de carga e de passageiros, gerando situações constrangedoras e polêmicas como noticiadas na imprensa, entre as quais a mais séria é de fazer diagnóstico de usuário de drogas ou de Dependente Químico (OMS/CID X – F10 a F19) sem o devido respaldo do serviço médico adequado. E como fica a consequente obrigação de orientar, encaminhar e tratar o referido paciente, com esse diagnóstico, no seu direito de acesso ao Sistema de Saúde, público ou privado, a partir de então? A legislação trabalhista brasileira promove o entendimento de que o trabalhador não pode ser demitido quando recebe tal diagnóstico, e sim deve ser orientado e encaminhado para orientação e tratamento pertinentes. Um diagnóstico não pode ficar restrito ao mero exame, uma vez que é um ato médico. Além disso, mesmo em caso de demissão, o trabalhador poderá recorrer à Justiça do Trabalho e reverter tal situação de acordo com a jurisprudência. Haverá, sem dúvida, considerável aumento de recurso judiciais e processos nos Tribunais da Justiça do Trabalho por todo o país.

Ao estabelecer o exame toxicológico como parte de efetivo programa de atenção e de prevenção dos problemas relacionados ao consumo de álcool e de outras drogas (PRADs), não só como justificada prioridade e estratégia para redução de acidentes e seus enormes prejuízos humanos e materiais, situação que coloca o Brasil entre os países com piores índices, o exame toxicológico com testes rápidos (de urina, sangue ou de ar expirado), podendo incluir o teste do cabelo (de larga janela de detecção) em acordo de contrato, pode e deve integra uma política estabelecida pelas empresas ou em contrato de prestação de serviços com motoristas profissionais autônomos, tendo o apoio, regulamentação e fiscalização do poder público. Portanto, tal política mais abrangente trata da condição de saúde e de segurança que só a mera aplicação dos exames toxicológicos não alcança. Assim, como temos colocado, os chamados 5 passos da Lei Seca devem ser considerados em conjunto e simultaneamente: Informação inteligente para analisar e diagnosticar melhor o problema (Centro de Tecnologia da Informação do Trânsito, por exemplo), Educação não só para os atuais condutores, mas também para os futuros motoristas dentro uma cultura de segurança viária e de respeito aos outros e à lei, Conscientização através de campanhas permanentes focando envolvimento e compromisso como direito e deveres de todos, Fiscalização como as blitz da Lei Seca que ganhou a simpatia de todos, somando rede de radares e câmeras em vias como iniciativa de coibir situações de riscos (excesso de velocidade, direção perigosa, etc.), e Punição/Justiça mais adequada e severa para os casos de acidentes com vítimas fatais e feridos graves, envolvendo o uso de álcool e outras drogas, considerando esses como casos de dolo eventual, pois que, como todos devem saber, dirigir sob efeito de álcool representa sério e efetivo risco. Assim, causar acidentes graves não pode continuar a ser visto, apenas, como crime culposo, pois o indivíduo assume o risco. Deste modo, países como França e EUA, sobretudo o primeiro, têm reduzido drasticamente o número de mortes e feridos nas estradas graças ás punições mais severas e proporcionais. Vale ressaltar, à guisa de informação, que estes dois países, referências na segurança viária mundial, não alteraram o nível de alcoolemia (concentração de álcool no sangue), mantendo 0,5 g/lt na França e 0,8 g/lt nos EUA. Contudo, no Brasil, ao reduzir a alcoolemia de 0,6 para 0,2 g/lt, a Lei nº 11.705/2008, a Lei Seca, representou um efetivo avanço da política de segurança viária, apesar do número de mortes e feridos não ter sido mais expressivo. Portanto, a taxa de alcoolemia zero não resultará em efetivas mudanças se não forem adotadas medidas mais abrangentes que possam influenciar efetivas mudanças de hábito e de cultura de trânsito cidadão (Programa dos 5 passos da Segurança Viária). Enquanto isso, o que todos nós temos constatado é que, apesar da Lei Seca, o número de mortes nas estradas aumentou cerca de 30% de 2008 a 2015! E o Brasil continua fora da curva e deverá chegar mal classificado em 2020 na Década Mundial de Segurança Viária - 2011/2020!

Um bom modelo a ser considerado pela viação rodoviária, refere-se a política de segurança da aviação civil adotada pela ANAC (Agência Nacional da Aviação Civil), em relação ao Exame Toxicológico, onde o exame do cabelo não merece o destaque dado na Lei nº 13.103/2015 e na Port. Nº 116/2015 (MTPS).

Na opinião de muitos especialistas em Medicina de Trânsito, inclusive colegas da França (Association Routiére - França), o exame do cabelo não é de grande especificidade e resolutividade, com o inconveniente de não ser teste rápido e não servir para identificação de álcool, a principal droga envolvida nos acidentes das estradas, não só no Brasil como em outros países. Pesa ainda o inconveniente dos sérios cuidados e rigor com a cadeia de custódia. Por outro lado, é oportuno destacar que recente estudo sobre impacto de doenças e lesões incapacitantes, realizado por Comissão de Saúde, formada por trinta das maiores autoridades mundiais em Saúde Pública ligadas à Universidade de Washington, e publicado em uma das mais renomadas revistas sobre medicina, a inglesa The Lancet (2016), aponta o consumo de álcool como principal fator de risco de morte no mundo entre jovens (de 15 a 25 anos); nesse mesmo estudo mostra, também, que são os acidentes de trânsito a primeira causa mundial de mortes de jovens com idade de 15 a 25 anos. Portanto, muito mais do que as drogas ilícitas, o consumo de álcool ocupa o primeiro lugar entre as causas de morte e de agravos sobre a saúde em geral, inclusive nos acidentes de trânsito.

No que concerne aos problemas criados para muitos profissionais, tais como, dificuldade na obtenção das CNH, falta de laboratórios credenciados e acessíveis para fazer exames (rede de coleta disponível), preços elevados para os motoristas, prejuízos pela demora na realização do exame e/ou na espera de resultados, dificuldades para exame de contra-prova ou teste de confirmação, ... Além desses contratempos, a constrangedora situação do diagnóstico de usuário de drogas ou de Dependente Químico, sem a devida e competente avaliação clínica por médicos habilitados deve ser levada em conta. Diante disso, como fica a orientação e o encaminhamento para o devido tratamento do eventual paciente? A Justiça do Trabalho entende que a empresa, antes de demitir, deve orientar e encaminhar o trabalhador para devido tratamento. Por outro lado, fica difícil imaginar que apenas cerca de seis ou sete laboratórios credenciados, e suas respectivas redes formadas às pressas por terceirizados e sem a adequada habilitação, possam dar conta com para atender essa nova demanda de usuários do Sistema de Saúde com eficácia e qualidade. Daí os protestos dos milhares de candidatos que precisavam da carteira de habilitação para trabalhar e dos diversos DETRANs de muitos estados que entraram com liminares na Justiça por não concordarem com essa medida legal.

Com referência às experiências de outros países com relação ao exame do cabelo, vale esclarecer que a Comunidade Europeia, em geral, não inclui o exame de cabelo na testagem toxicológica de rotina. Já nos EUA, são as empresas de transportes de carga (e de passageiros), e não os Governos, que desenvolvem programas estruturados de segurança viária, fazendo exames toxicológicos de controle (testes rápidos) e o exame de cabelo (de larga janela de detecção), dentro da linha de programas integrados focando não só a prevenção de acidentes, mas também a saúde dos trabalhadores deste segmento através de contratos estabelecidos e de acordo com as partes e os sindicatos. Em muitos países estes programas desenvolvidos pelas empresas, com apoio das entidades sindicais e patronais, recebem incentivos e estímulos dos governos.

Portanto, de acordo com os demais especialistas em Medicina de Trânsito, e entidades como a ABRAMET e o CFM, o enfrentamento do problema de consumo de álcool e de outras drogas entre os motoristas profissionais (transportes de cargas e de passageiros), incluindo o rebite, não deveria ser limitado apenas aos exames toxicológicos, muito menos ao exame de cabelo, mas sim merecer uma efetiva e ampla abordagem dentro das perspectivas da Saúde Pública e da Segurança Viária, ou seja, através de programas estruturados onde tais exames fazem parte das ações. Como outros países membros da ONU, o Brasil está comprometido com as metas da Campanha Década Mundial de Segurança Viária, 2011 - 2020 (OMS/ONU) e não pode de envidar os maiores esforços para alcançar ou minimizar de modo significativo os números das nossas tragédias anunciadas nas estradas, noticiadas quase diariamente. Por fim, cabe chamar a atenção para as discussões ocorridas na recente Assembleia Geral sobre Politicas de Drogas da ONU, realizada em 21-22 de abril, 2016, em Nova York, onde foi apresentado importantes avanços sobre os novos paradigmas do enfrentamento às drogas em diversos países do mundo. Assim, a nova Lei dos Caminhoneiros deve levar em conta esses novos paradigmas e preceitos apresentados nesta última Assembleia Geral Especial ONU que chama a atenção para a tendência mundial das novas abordagens de políticas sobre drogas como questão preponderante de Saúde Pública.

 

Prof. José Mauro Braz de Lima
PhD - Prof. Associado IV de Medicina da UFRJ (aposentado), Expert em Medicina de Tráfego e Membro da ABRAMET, Ex-Presidente da Junta Administrativa de Recursos de Infração do DETRAN RJ.